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Tai Chi Chuan na doença Crônica


O corpo se torna naturalmente leve

Quando a harmonia suprema é plena

(O clássico do Selo da mente do Imperador de Jade)

Durante o processo de adoecimento e a tomada de conhecimento da gravidade e irreversibilidade de uma doença crônica, as pessoas envolvidas podem passar “pelos seguintes estágios emocionais descritos na literatura médica: negação, isolamento, raiva, barganha, depressão e aceitação, resultando em adaptações relacionais e situacionais” (SCHOR e DINIZ, 2006).

Tudo se complica quando na vida da pessoa começam alterações na rotina influenciando em escolhas pessoais e familiares. Uma sensação ruim de que já não somos mais nós mesmos, de perda de identidade, como se o chão tivesse sido retirado e, repentinamente, não soubéssemos mais onde estamos pisando. A desorganização familiar é o efeito mais imediato que pode se manifestar e envolve situações simples, desde a mudança de móveis de lugar até situações bastante complexas, como a saída de um familiar de casa.

A aceitação de uma doença crônica inclui o tratamento prolongado, a irreversibilidade do quadro clínico e submissão a medicamentos e terapias continuadas. São situações em que se observam mudanças corporais e sofrimento psíquico, bem como uma nova forma de encarar a vida deve ser buscada. A ênfase do cuidado deve recair na qualidade de vida do ser humano, e não para a doença em si (SCHOR e DINIZ, 2006). Na literatura, tudo parece redondinho. No dia a dia do embate com a doença, compreender a saúde como um processo criativo, que permite lidar com as adversidades da vida de um modo transformador, pode ser muito desafiador. Descobri que é muito importante, no adoecimento e na busca da saúde relativa, a percepção do que é essencial para o bem viver. Nem sempre é fácil manter o foco em um estado de saúde dentro da “desorganização” que a doença acarreta.

Busquei o Tai Chi Chuan em 2006, após o meu terceiro transplante renal. Como muitos que passam no pátio do MAC (Museu de Arte Contemporânea de Niterói), fiquei extasiada olhando a instrutora conduzindo os “treinos” de “exercícios” iniciais, que depois vim a saber se tratarem de exercícios de Chi Gong (é uma disciplina da Medicina Tradicional Chinesa e, tal como esta, evoluiu através dos tempos). O Chi Kung (Qi Gong) é uma técnica milenar chinesa de treino interior, objetivando o equilíbrio do indivíduo como um todo: físico, mental e espiritual. Ele resulta de milhares de anos de experiência dos chineses no uso da energia (Qi) para tratar doenças, promover saúde e longevidade, expandir a mente, alcançar diferentes níveis de consciência e desenvolver a espiritualidade), seguidos das sequências de formas do Tai Chi Chuan, no estilo Yang.

Senti que aquilo era bom, me aproximei e comecei a praticar com o grupo. Como uma nova prática orientada pela tradição Taoista, imaginei que o Tai Chi deveria regular meu ritmo acelerado e minha respiração por meio dos movimentos suaves. Aos poucos, fui entendendo que a pressa e os hábitos corridos constituem uma rotina pouco saudável que nos aprisiona. Com a nova prática, pude me reaproximar da natureza e repensar meu cotidiano. Comecei a estudar os princípios do Tai Chi enquanto praticava e descobri um pouco sobre a meditação em movimento. A instrutora Chang Whan era professora de Tai Chi Chuan em Niterói desde 1994 e, como era paciente, uma verdadeira mestra, aos poucos fui aprendendo sobre a teoria e a prática.

O Tai Chi Chuan (também grafado Tai Ji Chuan ou Taijiquan) é uma antiga prática holística chinesa que vem sendo incorporada ao cotidiano da vida moderna de muitos chineses, bem como, e, cada vez mais, na vida de entusiastas praticantes no ocidente. Originalmente proveniente do sistema das artes marciais chinesas, a prática do Tai Chi Chuan seguiu um curso de evolução próprio, distinto, voltando-se mais para o cultivo da saúde e do bem-estar, do que propriamente a destreza na luta ou na defesa pessoal. Em consonância com as bases fundamentais da MTC (medicina tradicional chinesa) a saúde e o bem-estar devem ser cultivados de forma holística, ou seja, integrando o corpo, a mente e o espírito num todo orgânico. Tal concepção remonta aos ensinamentos da doutrina taoista, que concebe uma interligação entre tudo o que há através de um contínuo movimento dinâmico entre os opostos complementares, simbolicamente representados pelas duas polaridades energéticas YIN e YANG. Tai Chi Chuan se traduz como a “arte marcial da suprema polaridade”.

Representado graficamente pela mônada chinesa, o símbolo do yin-yang é descrito por Al Huang (1999) como “o entrosamento, a união-dissolução do movimento dentro de um círculo cujas energias semelhantes, e ao mesmo tempo contrastantes, movem-se juntas”.

Nessa representação gráfica, dentro da área em negro notamos um ponto branco; e na área branca em forma de peixe, um ponto negro. A ideia básica teria como finalidade demonstrar que o todo, ou a unidade, abrange a polaridade e o contraste. Os opostos, em contraste, como bem ilustra o símbolo gráfico, são percebidos não como oposição antagônica, mas como complementaridade em contínua interação dinâmica. Segundo Huang, a prática do Tai Chi Chuan pode nos ajudar a perceber o desequilíbrio e, a partir dessa consciência, recuperar o centro, restabelecendo o fluxo dinâmico entre os dois polos. O movimento lento e circular do Tai Chi Chuan ajuda a promover a integração entre o corpo e a mente do praticante, devido ao estado meditativo que a prática induz.

O Tai Chi Chuan é, portanto, uma forma de meditação em movimento, já tendo sido amplamente comprovada sua eficácia na dissolução de tensões internas, sejam físicas, sejam emocionais. No Tai Chi, os movimentos são externamente leves e suaves, mas internamente são geradores de energia e vigorosos. Os movimentos, aparentemente suaves, são gerados internamente a partir do sítio da energia vital, o “Dan Tien”, localizado numa região interna do corpo, três dedos abaixo do umbigo, de onde o “Chi”, a energia vital, emana e se propaga por todo o corpo durante a prática.

A suavidade no Tai Chi, portanto, não é mole, vazia, mas uma suavidade com substância, carregada de energia vital, plena de “Chi”. Podemos descobrir quão agradável e saudável é a prática de uma habilidade física e espiritual como o Tai Chi. Segundo os princípios das artes marciais, o corpo não é considerado um inimigo, mas sim, uma grande e preciosa ferramenta, e a mente, não é considerada um fim, mas uma ponte. Os exercícios de meditação em movimento como o Tai Chi Chuan, Lian Gong, Chi Kung entre outros, têm como principal objetivo a promoção e a manutenção da saúde por meio de técnicas respiratórias, meditação, posturas e movimentos fluidos e contínuos.

Podemos encontrar muitos relatos de estudos realizados na área médica enfocando os efeitos da prática regular do Tai Chi Chuan sobre as condições físicas, fisiológicas e de saúde de uma forma geral. Algumas pesquisas na área de geriatria e medicina do esporte buscam a comprovação dos efeitos benéficos da prática regular do Tai Chi na manutenção do equilíbrio corporal, no controle da pressão arterial, na fibromialgia e na artrite.

Os movimentos suaves do Tai Chi ajudam na manutenção da flexibilidade, da postura e do equilíbrio, bem como no relaxamento e fortalecimento muscular dos membros inferiores. Outros estudos vêm comprovando a eficácia da prática sobre a redução da pressão arterial e sobre o sistema cardiorrespiratório, reduzindo o nível de cortisol na corrente sanguínea. Grande parte dos estudos referem-se à contribuição do Tai Chi no envelhecimento saudável e na prevenção de quedas. A pesquisadora Stephanie S. Y. Au-Yeung estudou os benefícios para pessoas que sofreram AVC (acidente vascular cerebral). Ela concluiu que grupos de pessoas que sofreram AVC as quais praticaram a forma curta do Tai Chi por doze semanas, quando comparados com um grupo de controle que praticou somente exercícios, obtiveram ganhos significativos no equilíbrio de pé quando testados no equilíbrio dinâmico, na transferência de peso e na mobilidade funcional.

Alguns movimentos promovem exatamente uma sensação de “fluir das ondas”, conectando o praticante consigo e com o ambiente natural, tornando a percepção deste como parte integrante de si. O Tai Chi Chuan deve ser preferencialmente praticado em lugares abertos, ao ar livre, para que o praticante possa estar em conexão com a natureza. O contato com a luz solar, a brisa marítima, o frescor das montanhas, ou o farfalhar das folhas das árvores e o canto das aves são terapêuticos por si só e devem ser integrados à pratica. No extremo oposto, estão as doenças crônicas e suas limitações influenciando nas funções desempenhadas pelo indivíduo, gerando consequências físicas e psíquicas, tais como fragilidade emocional, dependência física e afetiva em relação ao meio social, ansiedade (medo de perda da autoestima, medo de ficar dependente, medo de morrer, medo de viver), com características muito particulares em cada fase do desenvolvimento humano.

Quanto a mim, devido à doença renal e aos anos na hemodiálise, tive tanto medo de não viver a minha juventude que pequei por excesso: fazia muitas coisas ao mesmo tempo, sempre correndo como se o tempo estivesse escorrendo pelos meus dedos, como grãos de areia numa ampulheta. Temendo pelas oportunidades que estavam sendo desperdiçadas, acostumada a viver desde a adolescência sob o jugo de tratamentos intermináveis, adaptando minha rotina de estudos e de trabalho, sentia que era muito difícil buscar a saúde nessas condições. Mas a saúde lá estava mesmo no corpo fragilizado e combalido pela dor. Em grande parte, é no sofrimento que o espírito ganha força e desperta. Há, neste corpo que sofre, espaço para um movimento gerador de transformação, de força e de suavidade.

De fato, há muitas possibilidades, e o Tai Chi é uma delas. Por meio do movimento constante de ir e vir, para além de movimentos que promovam vigor interior, tonificação dos músculos, aumento de flexibilidade, coordenação e força, há a redução do estresse, a renovação da energia vital e o aumento da consciência corporal. Uma consciência de estar vivo, em todos os movimentos.

Percebi na prática do Tai Chi, e pela observação de praticantes devotados, que mesmo um corpo adoecido pode reencontrar a saúde por meio da meditação em movimento. Aos poucos vai ocorrendo um diálogo entre a mente e os órgãos internos, liberando a linguagem do coração, aquela que perdoa as limitações de um corpo que já não pode responder com toda a desenvoltura de um corpo são, e exatamente por esse motivo necessita ainda mais de gratidão.

Durante a prática do Tai Chi Chuan, deve-se esvaziar a mente de pensamentos que possam roubar a atenção, que deve estar focada na sintonia do corpo com o movimento e a consciência. O eixo vertical, que alinha a coroa no topo da cabeça com a coluna vertebral até o cóccix, deve estar aprumado, estabelecendo assim, através da postura corporal correta, um canal de conexão entre o céu e a terra. Essa consciência axial deve se estender até a sola dos pés, em busca de um sentimento de “enraizamento”, suscitado pela imagem de uma árvore que aprofunda as raízes para manter o eixo vertical. Obviamente, o enraizamento no Tai Chi não vai imobilizar os pés no chão. O movimento lento e cultivado pela prática conduz o eixo e o enraizamento ora para uma perna, ora para outra, conforme os passos dados ao longo da sequência de movimentos e formas que se sucedem. Cada passo deve ser dado com esse sentimento de enraizamento, ou seja, de profunda conexão com o chão, com a terra. Alia-se a este trabalho de enraizamento a prática do relaxamento, tanto físico como mental, por meio da respiração naturalmente lenta e profunda. O corpo deve estar solto, e a mente tranquila, para que os movimentos se sucedam de forma fluida e contínua, propiciando, assim, a boa circulação do Chi, da energia vital. Fazer amigos num grupo assim é uma bênção, porque são pessoas que se encontram em torno de um mesmo ideal de saúde e equilíbrio.

Em qualquer situação de doença crônica, serão necessários a paciência e o autoconhecimento para suportar provas e limitações. Quando praticamos Tai Chi, observamos e sentimos no corpo uma prática possível, baseada em movimentos possíveis para pessoas com limitações articulares, cardiovasculares, metabólicas e outras. A cada treino, somos testados em nossa paciência, perseverança e persistência, por meio de uma prática que alia movimentos físicos e mentais. O que importa não é o desempenho quantitativo, mas o qualitativo, que se traduz, metaforicamente, como um caminho trilhado pelo praticante.

Durante os treinos, lemos textos de origem taoista, como o Tao te King, que sempre nos oferecem momentos de reflexão e aprofundamento na prática e, por que não dizer, na vida.

A bondade superior é como a água

A água favorece todas as coisas, e a nenhuma exclui

Permanece nos lugares desprezados pelos outros

Por isto se assemelha ao Sábio

No viver é que acha a felicidade da vida

No pensar se assemelha ao Abismo profundo

Na bondade, se harmoniza com todos

Nas palavras, é sincero

No governar, equilibrado

No trabalho, age com retidão

Para caminhar, encontra o melhor momento

Sendo assim não cria rivalidade. E a maldade fica esquecida

(Lao Tse-Tao te King, 1983)

Chang Whan, estudou Tai Ji Chuan nos anos de 1989 a 1994 na California com a Mestra Shen Hai Min, e é professora de Tai Ji Chuan em Niterói-RJ desde então.

Com ela escrevi este texto.


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